segunda-feira, fevereiro 23, 2009

CRENÇA , CORROBORAÇÃO E VERDADE CIENTÍFICA


 


 

Crença , corroboração e verdade científica

RICI – Seminário Permanente


 


 

André Barata

IFP/UBI


 


 

O conhecimento é crença qualificada...E é este tipo de qualificação que falta no vasto e importante campo do conhecimento conjectural.


 

Popper, CO, 80


 


 


 

Sumário:


 

    Este seminário visa abordar o efeito da crença no trabalho científico. Justifica-se a meu ver, e desde logo, pelo facto de todo o conhecimento se recortar de crenças, não fazendo diferença, para o caso, se o conhecimento é especificado como científico ou não. De uma forma ou de outra, o conhecimento é uma crença qualificada. Depois, é esperável, em virtude da sua natureza interdisciplinar, que este seminário possa dar conta de algumas formas particulares pelas quais o efeito da crença sobre o trabalho científico se faz sentir. Por exemplo, efeito da crença sobre os métodos científicos, efeito da crença sobre o esforço de justificação, efeito da crença na corroboração obtida sobre o próprio objecto de estudo, etc. Pela minha parte, procurarei cumprir três objectivos que passo a enunciar:

1. Relatar uma caracterização do conhecimento, que é sempre conhecimento de verdades, científicas ou não, como crença qualificada, designadamente como crença verdadeira e justificada. Procurarei ainda, adentro das condições a satisfazer para que haja conhecimento, explicitar as relações entre verdade e justificação a partir das teses que Donald Davidson defende em "Uma Teoria Coerencial da Verdade e do Conhecimento".

2. Exprimir algumas particularidades a respeito das nossas crenças em regularidades, sua formação e corroboração, e isto sob a preocupação de divisar o significado da diferença entre o que se faz em ciências naturais e o que se faz em ciências sociais. Para este tópico, farei referência às epistemologias de Karl Popper e de Friedrich Hayek.

3. Discutir qual o lugar da crença nos momentos do trabalho científico em função de diferentes posicionamentos marcantes na epistemologia contemporânea (designadamente, os de Karl Popper, Michael Polanyi, Thomas Kuhn, Imre Lakatos)


 

*****


 

1. O conhecimento como crença qualificada


 

É habitual considerar-se o conhecimento, e por maioria de razão o conhecimento científico, como uma espécie particular de crença. Não parece concebível, com efeito, que se pudesse não crer no que se conhece.

Evidentemente, a conversa não é verdadeira - nem todas as crenças são conhecimento, menos ainda conhecimento científico. Podemos sustentar crenças falsas, as quais, em virtude da sua falsidade, não são realmente conhecimento, pois o conhecimento é, por definição, conhecimento de verdades. Mas já por outro lado, mesmo entre as crenças verdadeiras nem todas valem como conhecimento. Julgar saber sem saber porquê não é realmente saber - donde, não bastar a uma crença ser verdadeira para que constitua conhecimento; necessário é que seja também uma crença justificada, uma crença provida de razões. Escusado será dizer que se uma crença é provida de razões, essas serão, necessariamente, boas razões. Ou temos razões ou não temos razões; más razões não são razões. Analogamente, ou temos conhecimento de verdades ou não temos, de todo, conhecimento; não conhecemos falsidades, apenas podemos julgar que as conhecemos e precisamente por as podermos julgar verdadeiras. Nisto, surpreende-se uma ilusão corrente, ainda que facilmente corrigível, para a qual uma certa tendência eufemística da nossa linguagem natural nos faz protender.

Naturalmente, também não basta a uma crença ser justificada para que constitua conhecimento; não sendo uma crença verdadeira não constituirá conhecimento. Já o disse. Assim, a falar de conhecimento, são pelo menos três as condições a satisfazer : tratar-se de uma crença, verdadeira e justificada.

A clareza desta resposta à pergunta o que é conhecimento - que se encontra por exemplo em Chisholm, Ayer, mas também, logo nos alvores da tradição filosófica, remontando ao Teeteto de Platão - não evita dois tipos de dificuldades. Por um lado, saber se estas três condições são, no seu conjunto, realmente suficientes para que tenhamos conhecimento. Por outro lado, saber sob que condições podemos dizer que temos, respectivamente, uma crença, uma crença verdadeira e uma crença justificada.

Relativamente à primeira dificuldade, é célebre um brevíssimo artigo de Edmund Gettier - Is Justified True Belief Knowledge? (1963)
- onde são expostas circunstâncias que contra-exemplificariam a suficiência das três condições que enunciei acima quando tomadas em conjunto. Numa palavra, pode haver crenças que, apesar de verdadeiras e justificadas, não constituam genuinamente conhecimentos. Isto porque as razões pelas quais uma crença é verdadeira podem não ser as razões contidas na justificação. A questão que se coloca, e que tem merecido amplo debate em sede epistemológica, é a de saber se falta, então, uma quarta condição, e se sim qual, ou se, em vez disso, o que está em causa é uma melhor caracterização de quais sejam as condições a satisfazer para que uma crença se diga realmente justificada. Noutros termos, deve ela ser infalível ou apenas bastante credível. Decidir entre estas duas alternativas obriga, pois, a enfrentar parte da segunda dificuldade - sob que condições uma crença se diz justificada? Justificações infalíveis dispensariam uma quarta condição; porém, se fossem apenas admitidas como boas justificações justificações infalíveis estar-se-ia a dispensar boa parte do que tomamos por bons e sólidos conhecimentos. Por exemplo, dificilmente se encontrará epistemólogo ou teórico das/nas ciências que assuma como infalível a justificação racional da teoria da relatividade generalizada e, no entanto, estamos longe de, por essa razão, assumirmos que a teoria de Einstein seja apenas uma crença, epistemicamente ao mesmo nível que as nossas crenças a respeito da astrologia, do bom governo de uma equipa de futebol, etc. A questão continua a ser a da qualificação exigível às nossas crenças para que possam valer como conhecimentos. Neste sentido, parece manifestamente que é a credibilidade que deve estar sob escrutínio.

    Esta questão particular acerca das condições sob as quais uma crença se diz justificada ganha ainda um maior alcance quando pode, segundo alguns autores, coincidir com a questão de saber sob que condições uma crença é verdadeira. Por exemplo, de acordo com Richard Rorty «nada conta como justificação, a não ser por referência ao que já aceitámos, e não há maneira de sair das nossas crenças e da nossa linguagem para encontrar outro teste que não a coerência». Esta é a posição conhecida como teoria coerentista da verdade, geralmente apresentada como proposta para ultrapassar dificuldades bem conhecidas da teoria da verdade como correspondência. Contudo, neste ponto, é decisiva a atenção do filósofo Donald Davidson e, para o caso, por duas razões. Em primeiro lugar, por não permitir a confusão entre teorias da verdade e teorias da justificação da verdade. Em segundo lugar, por resgatar a correspondência a partir da sua tese de que a coerência engendra correspondência.

Prestemos alguma atenção a estas duas razões que, a meu ver, ajudam a esclarecer boa parte do que está em questão nos actuais dabates sobre o relativismo de feição pós-moderna. A primeira dessas razões clarifica que uma teoria coerentista da justificação da verdade, de acordo com a qual «a maior parte das crenças de um conjunto total coerente de crenças é verdadeira», não é uma teoria que nos diga realmente o que é a verdade. Aliás, segundo Davidson, qualquer esforço de alcançar uma teoria da verdade está irremediavelmente condenado ao vício da circularidade - com efeito, se uma teoria da verdade tem de ser verdadeira, como definir a verdade sem a pressupor? Isto significa, por um lado, que a verdade é uma noção primitiva, e portanto indefinível, mas significa sobretudo que a verdade não deve ser confundida com a sua justificação, como se não pudesse haver uma verdade externa às nossas justificações.

A segunda das razões de Davidson tem a importância de nos não deixar apenas com a possibilidade de um externalismo, mas de o tornar razoável e, a par disso, de dar uma resposta negativa ao cepticismo e ao relativismo. Aqui, o ponto de Davidson consiste em argumentar a favor da ideia de que a coerência interna - que é o único lugar da justificação - engendra correspondência externa. «O que distingue uma teoria coerencial é simplesmente a reivindicação de que nada pode contar como uma razão para sustentar uma crença, excepto outra crença.» Neste sentido, não é possível dar um fundamento empírico ao conhecimento. Se a experiência empírica é intermediária entre a realidade e as nossas crenças, é-o apenas enquanto "intermediária causal" e não como "intermediária epistémica". As sensações, os dados dos sentidos, não são crenças, nem as justificam, apenas causam-nas. Mas, atente-se, desta premissa não se segue que não possamos, diz Davidson, «ter conhecimento de, e falar sobre um mundo público objectivo que não é da nossa própria construção».

Concluindo este ponto, o facto de se defender uma teoria coerentista da justificação da verdade não contradiz necessariamente o desígnio da correspondência. Esta é possível desde que pensada não como uma confrontação directa com a realidade, mas, justamente, através do teste da coerência.


 

Vimos que o conhecimento não admite o falso - o verbo `conhecer`, aliás à semelhança de verbos como `saber` ou `ver`, é um verbo factivo -; vimos também que a verdade, pelo menos segundo alguns autores, pode ser justificada a partir de uma teoria coerencial. Agora, se nos reportamos ao conhecimento científico e à verdade científica, o facto de empregarmos o adjectivo `científico` supõe algum tipo de especificação. De que forma poderemos dar conta dessa especificação? Em que é que se distinguem o conhecimento científico e a verdade científica de conhecimentos e verdades não científicos?

Num sentido, a distinção prende-se simplesmente com a origem - é científico o conhecimento obtido em sede científica, é científica a verdade conhecida em sede científica. É certo que a origem não qualifica especialmente o conhecimento e a verdade científicos a não ser em virtude da própria credibilidade da instituição científica - digo isto porque não constitui uma afirmação injustificada afirmar que a admissibilidade científica é, já de si, um indicador de credibilidade. Aliás, explica-se assim o uso retórico dos qualificativos `científico`, `testado laboratorialmente`, etc., como certificados de qualidade garantida. Contudo, não há nenhuma razão, entenda-se particularmente boa, para que conhecimentos cuja origem não passe pelas práticas científicas sejam, ou devam ser, considerados menos credíveis do que o conhecimento científico. Se todo o conhecimento deve satisfazer uma justificação que seja pelo menos credível, então o célebre problema da demarcação da ciência face à pseudo-ciência não estará, substantivamente, tão interessado em distinguir o conhecimento científico de outras formas de conhecimento quanto em distinguir o conhecimento (seja ou não científico) do pseudo-conhecimento. Exemplarmente, poder-se-á considerar que a astrologia não é uma ciência porque, pura e simplesmente, não constitui conhecimento.


 

2. A crença em regularidades


 

Até agora falei de como devem ser qualificadas as crenças para que constituam conhecimento, a saber, como crenças verdadeiras e justificadas; aflorei a relação entre verdade e justificação e entre correspondência e coerência; argumentei que a demarcação realmente decisiva é a do conhecimento, justamente como crença qualificada, face à mera crença.

Mas sobre as próprias crenças, há um aspecto em particular cuja elucidação me parece decisiva para o entendimento do trabalho científico, a saber, a formação de um certo tipo de crenças: as crenças em regularidades. Como se formam estas crenças? Desta feita, a questão não incide sobre a origem lógica - não se trata de saber como podemos justificar as crenças em regularidades, se é que são justificáveis - mas simplesmente saber como se formam. A pergunta é, pois, psicológica (e não lógica), prende-se com o processo cognitivo e pode ser reformulada assim: como se chega a crer em regularidades a partir da constatação de correlações ?

Uma resposta clássica a esta pergunta consiste na indução das regularidades a partir da constatação repetida de correlações. Esta é, contudo, uma resposta que pode e deve ser discutida. Por exemplo, é conhecida a posição de Karl Popper segundo a qual a indução, ou seja, a crença obtida por meio da repetição, não é mais do que um mito - lógica e psicologicamente falando. Aparte a discussão lógica, que evitarei, de um ponto de vista psicológico o que Popper defende é que existem expectativas inatas, em particular a da regularidade, que resultam a priori (ainda que não sejam válidas a priori). Por outras palavras, a observação - admitindo o ponto de vista de Popper - não contribui para a formação das nossas crenças em regularidades, mas tão-só para a sua infirmação ou corroboração. A este propósito , escreve Popper em Conjecturas e Refutações:


 

Nós nascemos com expectativas, com um "conhecimento" que, apesar de não válido
a priori, é psicologicamente ou geneticamente
a priori, i.e, anterior a toda a experiência de observação. Uma das mais importantes destas expectativas é a expectativa de encontrar um padrão de regularidade. Está ligada a uma propensão inata para procurar regularidades, ou uma necessidade de encontrar regularidades, como podemos verificar pelo prazer de uma criança que satisfaz essa necessidade.


 

É certo que Popper exprime pouco mais do que uma convicção carente de razões explícitas. O que não significa que não se trate de uma convicção bem fundada, faltou-lhe, diria, razões mais explícitas, designadamente mais explícitas do que o prazer de uma criança em encontrar regularidades, o qual, aliás, não representa realmente nada de incompatível com a indução .

Julgo que uma boa razão que pode militar, pelo menos parcialmente, a favor do ponto de vista de Popper está no modelo conexionista para a cognição humana, pois com este verifica-se ser «possível dotar as redes neurais de regras de aprendizagem que as leva a generalizar espontaneamente quando se detecta uma certa correlação... ». De certo modo, esta generalização espontânea a partir da
fixação de uma correlação, generalização que é prévia ao reforço da correlação em virtude de uma sua constatação repetida, vem atender a, e pôr em melhores bases, a inversão defendida por Popper relativamente a uma suposta formação indutiva das crenças em regularidades: a constatação repetida de uma correlação reforça , ou seja, corrobora psicologicamente a crença numa regularidade, mas não é o caso que a forme. Sublinhe-se que a constatação repetida não é, pelo que se disse, desprovida de valor epistémico - é indiscutível que contribui para a corroboração de uma regularidade, corroboração que dificilmente pode ser definida noutros termos que não os de uma crença reforçada.

    Esta discussão de cariz psicológico é, na minha opinião, epistemicamente bastante relevante, pois, se todo o conhecimento, como vimos, é crença qualificada, já por outro lado o tema de uma generalização espontânea, bem como os argumentos de Popper, revelam que pode bem ser da própria natureza da cognição humana crermos em regularidades. E se assim for, apesar da especificidade de cada domínio científico, designadamente o recorte entre ciências naturais e ciências sociais, haverá um mínimo denominador comum na base das nossas capacidades de obter conhecimento - não só o conhecimento constituir-se como uma qualificação de crenças, mas envolver nestas, de forma constitutiva e geneticamente a priori, crenças em regularidades.

Isto conduz-me à sugestão de que, metodologicamente, é mais o que une do que o que divide as ciências naturais e as ciências sociais, e isto desde que nos situemos num plano de considerações bastante abstracto, onde o que esteja em discussão seja apenas opções basilares como indução versus hipótese, explicação com recurso a regularidades ou não, etc. A este propósito, é particularmente interessante considerar as posições epistemológicas de Hayek acerca das ciências sociais.

No que diz respeito à questão do método científico, Hayek, em Scientism and the Study of Society, concluía que não seria possível aplicar às ciências sociais o método das ciências naturais. Esta conclusão tinha por base o facto de Hayek ter suposto, em conformidade com o pensamento epistemológico dominante à época, que o método das ciências naturais seria um método indutivo-dedutivo, o que ele não reconhecia nas ciências sociais, as quais, a seu ver, procedem de modo hipotético-dedutivo, através da criação de modelos abstractos de análise das interacções sociais de que se inferem dedutivamente consequências particulares, consequências que podem pôr à prova a eficácia explicativa do modelo. Nisto, o curioso é Hayek, ao descobrir a epistemologia popperiana, se ter dado conta de que quando as ciências sociais procuravam, por uma espécie de mimetismo, seguir uma metodologia indutiva mais não faziam do que seguir uma representação enganadora do que seriam as ciências naturais. Ao modelo exaltado do positivismo científico – aquilo a que Hayek chamava depreciativamente "cientismo" – afinal, nada correspondia, nem nas ciências sociais nem nas naturais.

Com isto, pareceria que Hayek assume para as ciências sociais tudo o que Popper assume para as ciências naturais. Mas não é tanto assim e isto por duas razões. Em primeiro lugar, a complexidade nas ciências sociais implica que a informação nunca seja completa, pelo que as predições só podem dispor de um alcance limitado e genérico. Por esta razão , de acordo com Hayek as ciências sociais apenas obtêm padrões de predição, incapazes de explicar eventos singulares. Em segundo lugar, ainda em Scientism and the Study of Society, Hayek clarifica que os factos tratados pelas ciências sociais não são da mesma natureza que os factos tratados pelas ciências naturais: naqueles não importam as propriedades físicas dos objectos, mas as crenças, expectativas e intenções que as pessoas detêm acerca desses objectos e isto num contexto de interacção entre agentes. Sobre este ponto, Hayek dá a seguinte ilustração:


 

«Um fármaco ou um produto de beleza, por exemplo , não são considerados, à luz da investigação sociológica, como coisas capazes destes mesmos efeitos ... O que importa para as ciências sociais não é que estas leis da natureza sejam verdadeiras ou falsas em sentido objectivo, mas que os homens assim as considerem e que, portanto, se comportem de acordo com esta convicção .»


 

Quer isto dizer que, pelo menos para Hayek, o objecto da investigação científica nas ciências sociais integra necessariamente crenças, expectativas, intenções. E se, metodologicamente, o que se obtém são explicações científicas através de modelos de análise, então nas ciências sociais estarão em jogo crenças em regularidades acerca de crenças. Indo um pouco mais longe, se não importa se as leis da natureza são, ou não, verdadeiras, mas antes se as pessoas assim as consideram, e não havendo nenhuma razão de princípio para que se não diga o mesmo relativamente a supostas leis ou regularidades nas ciências sociais, então estas serem verdadeiras não será tão importante quanto as pessoas assim as considerarem. O que não significa que não tenham importância nenhuma; têm-na mas, como vimos com Davidson, sob a mediação das crenças de que são causa. Ora, sob este pressuposto, não é difícil prosseguir o raciocínio até novos resultados. Desde logo, podendo haver diferentes sistemas de crenças acerca das leis da natureza, também poderão ser diferentes os padrões de predição para cada um desses sistemas de crenças. E podendo, por seu turno, as crenças acerca dos padrões de predição ser diferentes, então é suscitado um fenómeno que formularia assim: a crença ou descrença numa regularidade ter efeito causal sobre a própria regularidade. Ou seja: a crença numa regularidade é, ou pelo menos pode ser, uma variável a ter em conta na corroboração de, e concomitante crença em, essa mesma regularidade.

Este fenómeno levanta variadíssimas questões. Por exemplo, importaria determinar i) qual é a extensão do fenómeno e se é variável consoante a área disciplinar em causa, ii) se a circularidade entre a posição da crença como causa da corroboração e a da crença como efeito concomitante à corroboração constitui, de algum modo, um vício e, em caso afirmativo, se existem procedimentos de "controlo" que permitam, de algum modo, inibir o efeito causal da crença na regularidade sobre a própria regularidade; e ainda iii) se, diversamente, tal circularidade permite extrair conclusões acerca do estatuto do objecto do trabalho científico em certas áreas disciplinares.

Se fosse possível equacionar o efeito causal da crença numa regularidade sobre a própria regularidade, o que pelo menos por ora não é o caso, tal passaria possivelmente por uma função não linear. E isto permitiria analogar este efeito da crença na regularidade com fenómenos naturais cuja ocorrência é apenas descritível em termos de funções não lineares. Esta analogia pode estender-se a muitos fenómenos naturais que envolvem iterações e grande sensibilidade às condições iniciais. Basicamente, o que está envolvido nestes fenómenos é os efeitos não serem proporcionais às causas; daí a grande sensibilidade às condições iniciais e a incapacidade, mesmo no mais estrito determinismo, em obter predições a longo termo.

Quer isto pelo menos dizer que a complexidade e a imprevisibilidade a longo termo não são apanágio das ciências sociais. Quer ainda dizer que as metodologias baseadas na matemática do caos podem sugerir um bom princípio metodológico para enquadrar teórica e abstractamente, digamos assim, o efeito causal da crença em regularidades. Mas dificilmente mais do que isso. Com efeito, de um bom princípio metodológico a um método capaz de obter resultados vai uma grande diferença - com efeito, a muitos autores não parece realista esperar que se possa identificar e equacionar todas as variáveis envolvidas nos fenómenos investigados pelas ciências sociais e humanas. De certo modo, tratar-se-ão apenas, e para empregar uma expressão de Hayek, de "explicações de princípio".


 

3. O efeito da crença nos contextos de descoberta e de justificação


 

Quando se assume que o conhecimento é, por definição, crença, ainda que qualificada, trata-se obviamente de crenças expressas. Por exemplo, conhecer as leis que regem a queda dos graves implica as crenças expressas de que massa e peso não são o mesmo, de que a aceleração com que se dá a queda de um grave é independente da sua massa, etc. Já as crenças que vimos Popper assumir como psicologicamente a priori enquadram-se num horizonte de expectativas pré-temático, longe pois do carácter expresso da crença qualificada que vale como conhecimento.

A ideia de uma dependência do conhecimento expresso relativamente a um nível não expresso, apenas tácito foi particularmente notada por M. Polanyi que, a este propósito, introduziu o conceito teórico de `conhecimento tácito` cujo significado ficou condensado na ideia bem popularizada de que «poderíamos conhecer mais do que podemos dizer» (we could know more than we can tell). Um conhecimento que fosse inteiramente explícito é, para Polanyi, um conhecimento inconcebível.


 

We have seen tacit knowledge to comprise two kinds of awareness, subsidiary awareness and focal awareness. Now we see tacit knowledge opposed to explicit knowledge; but these two are not sharply divided. While tacit knowledge can be possessed by itself, explicit knowledge must rely on being tacitly understood and applied. Hence, all knowledge is either tacit or tacit knowledge. A wholly explicit knowledge in unthinkable.


 

Esta dimensão tácita de conhecimento remete para um tipo de conhecimento que já não é proposicional, ou seja com a forma `Sei que p`, mas para um tipo de conhecimento que é, em parte, conhecimento de práticas científicas, práticas mantidas por uma comunidade científica, e é também, noutra parte, composto pelo conjunto de compromissos pessoais, crenças e expectativas, que denotam o empenhamento pessoal do sujeito no conhecimento. Daí, a tese de Polanyi de que o conhecimento é sempre conhecimento pessoal. Numa palavra, o juízo científico, por exemplo sobre a bondade de uma teoria ou uma sua possível refutação, é para Polanyi um juízo pessoal, no qual estão envolvidos aspectos irredutíveis a uma racionalidade estritamente formal. Ora, se Popper subscreveria com facilidade a ideia de uma insuficiência no esforço de caracterizar formalmente o momento relativo à formação criativa de conjecturas, porém já não acompanharia, por certo, a ideia de Polanyi de estender essa insuficiência ao próprio momento da justificação racional.

Aproveitando a clássica distinção, da autoria de Reichenbach, entre contexto de descoberta e contexto de justificação, a intransigência de Popper relativamente à posição de Polanyi não poderia deixar de se fazer sentir quanto ao segundo contexto - o lugar da crença no trabalho científico não pode inibir, influenciar ou ter de algum modo efeito sobre a justificação científica, a qual é, para Popper, exclusivamente baseada em critérios de discussão crítica, testes de falsificação, níveis de corroboração e verosimilhança. Assim, o lugar das crenças e expectativas, enquanto factores causais, deveria limitar-se ao contexto da descoberta. Simplesmente, não parece que Popper tenha atendido realmente à ciência tal qual se faz, para retomar uma expressão feliz que serviu de título a um volume coordenado por Fernando Gil. Não é de todo claro que o que interessa a um cientista, a saber, distinguir uma boa teoria de uma má teoria, passe pelo critério popperiano de demarcação da ciência face à metafísica - bem entendido, uma teoria científica prever as condições segundo as quais seria refutável não é um factor dispiciendo na sua discussão crítica e esta, por seu turno, é, sem dúvida, um momento indispensável na racionalidade científica. Mas, a suposição de que a ocorrência de um, ou mais, testes negativos seja condição suficiente, sequer necessária, para a refutação de uma teoria científica é uma suposição que, algo ironicamente, se deixa refutar. Fossem assim avaliadas as teorias científicas e, provavelmente, a teoria de Copérnico, por exemplo, teria sido preterida a favor do geocentrismo. De acordo com M. Polanyi, Copérnico não optou pelo heliocentrismo por nenhuma razão baseada na observação, quer a seu favor quer em desfavor do geocentrismo, mas fundamentalmente por razões ligadas ao seu conhecimento tácito. Lakatos, que também toma em atenção o exemplo histórico da teoria copernicana, embora em termos distintos dos de Polanyi, sustenta que, além de predizer novos factos, o heliocentrismo satisfazia, melhor do que a teoria ptolomaica, ideais como o da perfeição e da simplicidade, os quais não são reconduzíveis aos critérios popperianos.

Se, assim, não parece razoável sustentar a ineficácia de crenças e expectativas tácitas, bem como de compromissos comunitários, no contexto de justificação do trabalho científico, o que impede, então, a conclusão de que seriam apenas critérios sociológicos e psicológicos a justificar a refutação ou salvaguarda de uma teoria científica? O que impede a admissibilidade de quaisquer metodologias ao jeito do "anarquismo metodológico" de Feyerabend? Se nada impedir esta conclusão, então, como Kuhn afirmou, pode suceder que um novo paradigma se imponha não por persuadir racionalmente os investigadores, mas tão-só por estes se retirarem, dando lugar a outros, mais novos; mesmo se algum investigador se deixasse convencer não seria exactamente porque haja uma argumentação que o persuada racionalmente, mas porque sucede uma mudança global de percepção comparável a uma conversão religiosa. Esta é, em síntese, a posição do Kuhn mais radical. Mas a conversão do olhar teórico, digamos assim, ser comparada a uma conversão religiosa suscita razoáveis apreensões - por princípio, a segunda dispensa o que a primeira deveria exigir, a saber, ser racionalmente justificada, portanto, acompanhada por razões explícitas, em todo o caso, razões susceptíveis de discussão. A haver semelhança deveria, pois, ser meramente psicológica - aí sim, a psicologia da percepção, e em particular a gestalttheorie, pode dar um fecundo contributo para a compreensão da mudança teórica, sobretudo sob a aceitação do suposto de que, por princípio, o conhecimento está necessariamente fundado numa dimensão tácita. Mas esta semelhança psicológica não impede nem deve impedir a ressalva do trabalho racional da justificação.

A este propósito, parece bem mais equilibrada a posição de Lakatos: conhecimento pessoal, crenças e expectativas tácitas, conversão psicológica do olhar teórico, embora ocorram - contrariamente à posição de Popper - no contexto de justificação, não representam uma suspensão da racionalidade científica, mas o reconhecimento de que esta mesma racionalidade não é imediata, mas processual. De certo modo, o que é distintivo nos programas de investigação científica é a sua própria racionalidade ser um projecto a longo prazo. O que salvaguarda o "núcleo firme" de um programa de investigação científica e mantém-no relativamente imune à falsificação, via argumentos do tipo Modus Tollens , não é assim um critério sociológico, mas uma racionalidade metodológica que evita que a alternativa a uma utópica racionalidade imediata seja uma liminar sujeição da decisão científica a razões alheias à racionalidade científica.

O ponto não está, pois, em recusar o efeito causal das crenças em nenhum momento do trabalho científico, mas em compreender que esse efeito não anula, em princípio, a reivindicação de uma racionalidade científica como última palavra no processo de constituição do conhecimento científico.

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