Dado, Informação, Conhecimento e Competência
Valdemar W. SetzerDepto. de Ciência da Computação, Universidade de São Paulovwsetzer@ime.usp.br - www.ime.usp.br/~vwsetzer
(Este artigo é uma ampliação e atualização do artigo correspondente publicado na revista Datagrama (V. abaixo); ele foi publicado em Setzer, V.W. Os Meios Eletrônicos e a Educação: Uma Visão alternativa. São Paulo: Editora Escrituras, Coleção Ensaios Transversais Vol. 10, 2001.)
1. Introdução
O que é "ser competente em inglês"? O leitor deveria tentar responder a essa pergunta antes de prosseguir na leitura deste artigo. Seria interessante tomar nota de sua resposta, para compará-la com o que virá adiante.
Fiz essa pergunta a vários profissionais de Tecnologia de Informação (T.I.), durante entrevistas para levantamento de suas competências. As respostas variavam desde "ter fluência nessa língua" até "saber pensar em inglês". Razoavelmente vagas, não é verdade? Pois problema de caracterizar claramente o que se deve compreender como "competência" foi o primeiro que enfrentei ao receber a encomenda de organizar um Centro de Competências em T.I. para a grande empresa de engenharia PROMON. A literatura não ajudou: logo vi que há uma confusão muito grande entre "conhecimento" e "competência". Pior, tendo chegado ao problema de distinguir entre esses dois conceitos, a literatura ajudou a confundir ainda mais as coisas, pois havia uma grande confusão entre "informação" e "conhecimento". Ao chegar em "informação", foi necessário distingui-la de "dado", mas aí defrontei-me com um conceito sobre o qual já elaborado. Seguirei aqui, então, o caminho inverso, desde "dado" até competência.
Seria também interessante que o leitor procurasse neste ponto dar sua caracterização do que entende por "informação" e "conhecimento". Mas não pense que sua provável dificuldade não é comum: por "coincidência", durante os estudos para conceituar esses termos, saiu o número 81 de 10/8/98 da excelente revista eletrônica Netfuture, sobre tecnologia e responsabilidade humana; nele, seu editor Stephen Talbott descreve que, em duas conferências dadas para bibliotecários, com grandes audiências, ao perguntar o que entendiam por "informação", ninguém arriscou qualquer resposta [Talbott].
Este artigo inicia com a definição do que vem a ser "dado", para daí partir para a caracterização (e não definição, como se verá) de "informação", seguindo-se "conhecimento" e "competência". Ver-se-á que minha conceituação de "competência" depende de dois fatores, levando a uma representação matricial, a "matriz de competências". Depois de considerações gerais sobre esses conceitos, e uma discussão da literatura, é descrito como eles foram usados na implantação de dois sistemas de gerenciamento de competências, na PROMON Engenharia e na PRODESP (Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo), com levantamento das competências de cerca de 100 profissionais, até o momento da revisão deste artigo. Finalmente, são feitas considerações sobre a implantação de Centros de Competência.
Uma versão anterior deste artigo foi publicada na revista eletrônica Datagrama Zero, número zero, artigo 1, dez. 1999 (ver vínculo em meu "site", onde se encontra uma versão local formatada).
2. Dado
Defino dado como uma seqüência de símbolos quantificados ou quantificáveis. Portanto, um texto é um dado. De fato, as letras são símbolos quantificados, já que o alfabeto, sendo um conjunto finito, pode por si só constituir uma base numérica (a base hexadecimal emprega tradicionalmente, além dos 10 dígitos decimais, as letras de A a E). Também são dados fotos, figuras, sons gravados e animação, pois todos podem ser quantificados a ponto de se ter eventualmente dificuldade de distinguir a sua reprodução, a partir da representação quantificada, com o original. É muito importante notar-se que, mesmo se incompreensível para o leitor, qualquer texto constitui um dado ou uma seqüência de dados. Isso ficará mais claro no próximo item.
Com essa definição, um dado é necessariamente uma entidade matemática e, desta forma, é puramente sintático. Isto significa que os dados podem ser totalmente descritos através de representações formais, estruturais. Sendo ainda quantificados ou quantificáveis, eles podem obviamente ser armazenados em um computador e processados por ele. Dentro de um computador, trechos de um texto podem ser ligados virtualmente a outros trechos, por meio de contigüidade física ou por "ponteiros", isto é, endereços da unidade de armazenamento sendo utilizada, formando assim estruturas de dados. Ponteiros podem fazer a ligação de um ponto de um texto a uma representação quantificada de uma figura, de um som, etc..
O processamento de dados em um computador limita-se exclusivamente a manipulações estruturais dos mesmos, e é feito por meio de programas. Estes são sempre funções matemáticas, e portanto também são "dados". Exemplos dessas manipulações nos casos de textos são a formatação, a ordenação, a comparação com outros textos, estatísticas de palavras empregadas e seu entorno, etc.
3. Informação
Informação é uma abstração informal (isto é, não pode ser formalizada através de uma teoria lógica ou matemática), que está na mente de alguém, representando algo significativo para essa pessoa. Note-se que isto não é uma definição, é uma caracterização, porque "algo", "significativo" e "alguém" não estão bem definidos; assumo aqui um entendimento intuitivo (ingênuo) desses termos. Por exemplo, a frase "Paris é uma cidade fascinante" é um exemplo de informação – desde que seja lida ou ouvida por alguém, desde que "Paris" signifique para essa pessoa a capital da França (supondo-se que o autor da frase queria referir-se a essa cidade) e "fascinante" tenha a qualidade usual e intuitiva associada com essa palavra.
Se a representação da informação for feita por meio de dados, como na frase sobre Paris, pode ser armazenada em um computador. Mas, atenção, o que é armazenado na máquina não é a informação, mas a sua representação em forma de dados. Essa representação pode ser transformada pela máquina, como na formatação de um texto, o que seria uma transformação sintática. A máquina não pode mudar o significado a partir deste, já que ele depende de uma pessoa que possui a informação. Obviamente, a máquina pode embaralhar os dados de modo que eles passem a ser ininteligíveis pela pessoa que os recebe, deixando de ser informação para essa pessoa. Além disso, é possível transformar a representação de uma informação de modo que mude de informação para quem a recebe (por exemplo, o computador pode mudar o nome da cidade de Paris para Londres). Houve mudança no significado para o receptor, mas no computador a alteração foi puramente sintática, uma manipulação matemática de dados.
Assim, não é possível processar informação diretamente em um computador. Para isso é necessário reduzi-la a dados. No exemplo, "fascinante" teria que ser quantificado, usando-se por exemplo uma escala de zero a quatro. Mas então isso não seria mais informação.
Por outro lado, dados, desde que inteligíveis, são sempre incorporados por alguém como informação, porque os seres humanos (adultos) buscam constantemente por significação e entendimento. Quando se lê a frase "a temperatura média de Paris em dezembro é de 5oC" (por hipótese), é feita uma associação imediata com o frio, com o período do ano, com a cidade particular, etc. Note que "significação" não pode ser definida formalmente. Aqui ela será considerada como uma associação mental com um conceito, tal como temperatura, Paris, etc. O mesmo acontece quando se vê um objeto com um certo formato e se diz que ele é "circular", associando – através do pensar – a representação mental do objeto percebido com o conceito "círculo". Para um estudo profundo do pensamento, mostrando que quanto à nossa atividade ele é um órgão de percepção de conceitos, veja-se uma das obras fundamentais de Rudolf Steiner, A Filosofia da Liberdade, especialmente o cap. IV, "O mundo como percepção" [Steiner 2000 pg. 45].
A informação pode ser propriedade interior de uma pessoa ou ser recebida por ela. No primeiro caso, está em sua esfera mental, podendo originar-se eventualmente em uma percepção interior, como sentir dor. No segundo, pode ou não ser recebida por meio de sua representação simbólica como dados, isto é, sob forma de texto, figuras, som gravado, animação, etc. Como foi dito, a representação em si, por exemplo um texto, consiste exclusivamente de dados. Ao ler um texto, uma pessoa pode absorvê-lo como informação, desde que o compreenda. Pode-se associar a recepção de informação por meio de dados à recepção de uma mensagem. Porém, informação pode também ser recebida sem que seja representada por meio de dados mensagens. Por exemplo, em um dia frio, estando-se em um ambiente aquecido, pondo-se o braço para fora da janela obtém-se uma informação – se está fazendo muito ou pouco frio lá fora. Observe-se que essa informação não é representada exteriormente por símbolos, e não pode ser denominada de mensagem. Por outro lado, pode-se ter uma mensagem que não é expressa por dados, como por exemplo um bom berro por meio de um ruído vocal: ele pode conter muita informação, para quem o recebe, mas não contém nenhum dado.
Note-se que, ao exemplificar dados, foi usado "som gravado". Isso se deve ao fato de os sons da natureza conterem muito mais do que se pode gravar: ao ouvi-los existe todo um contexto que desaparece na gravação. O ruído das ondas do mar, por exemplo, vem acompanhado da visão do mar, de seu cheiro, da umidade do ar, da luminosidade, do vento, etc.
Uma distinção fundamental entre dado e informação é que o primeiro é puramente sintático e a segunda contém necessariamente semântica (implícita na palavra "significado" usada em sua caracterização). É interessante notar que é impossível introduzir e processar semântica em um computador, porque a máquina mesma é puramente sintática (assim como a totalidade da matemática). Por exemplo, o campo da assim chamada "semântica formal" das "linguagens" de programação, é de fato, apenas um tratamento sintático expresso por meio de uma teoria axiomática ou de associações matemáticas de seus elementos com operações realizadas por um computador (eventualmente abstrato). De fato, "linguagem de programação" é um abuso de linguagem, porque o que normalmente se chama de linguagem contém semântica. (Há alguns anos, em uma conferência pública, ouvi Noam Chomsky – o famoso pesquisador que estabeleceu em 1959 o campo das "linguagens formais" e que buscou intensivamente por "estruturas profundas" sintáticas na linguagem e no cérebro –, dizer que uma linguagem de programação não é de forma alguma uma linguagem.) Outros abusos usados no campo da computação, ligados à semântica, são "memória" e "inteligência artificial". Não concordo com o seu uso porque nos dão, por exemplo, a falsa impressão de que a memória humana é equivalente em suas funções aos dispositivos de armazenamento dos computadores, ou vice-versa. Theodore Roszack faz interessantes considerações mostrando que nossa memória é infinitamente mais ampla [Roszack 1994 pg. 97]. John Searle, o autor da famosa alegoria do Quarto Chinês (em que uma pessoa, seguindo regras em inglês, combinava ideogramas chineses sem entender nada, e assim respondia perguntas – é a assim que o computador processa dados), demonstrando que os computadores não possuem qualquer entendimento, argumentou que os computadores não podem pensar porque lhes falta a nossa semântica [Searle 1991 pg. 39].
A alegoria de Searle sugere um exemplo que pode esclarecer um pouco mais esses conceitos. Suponha-se uma tabela de três colunas, contendo nomes de cidades, meses (representados de 1 a 12) e temperaturas médias, de tal forma que os títulos das colunas e os nomes das cidades estão em chinês. Para alguém que não sabe nada de chinês nem de seus ideogramas, a tabela constitui-se de puros dados. Se a mesma tabela estivesse em português, para quem está lendo este artigo ela conteria informação. Note-se que a tabela em chinês poderia ser formatada, as linhas ordenadas segundo as cidades (dada uma ordem alfabética dos ideogramas) ou meses, etc. – exemplos de processamento puramente sintático.
4. Conhecimento
Caracterizo Conhecimento como uma abstração interior, pessoal, de algo que foi experimentado, vivenciado, por alguém. Continuando o exemplo, alguém tem algum conhecimento de Paris somente se a visitou. Mais adiante essa exigência será um pouco afrouxada (V. item 5).
Nesse sentido, o conhecimento não pode ser descrito; o que se descreve é a informação. Também não depende apenas de uma interpretação pessoal, como a informação, pois requer uma vivência do objeto do conhecimento. Assim, o conhecimento está no âmbito puramente subjetivo do homem ou do animal. Parte da diferença entre estes reside no fato de um ser humano poder estar consciente de seu próprio conhecimento, sendo capaz de descrevê-lo parcial e conceitualmente em termos de informação, por exemplo, através da frase "eu visitei Paris, logo eu a conheço" (supondo que o leitor ou o ouvinte compreendam essa frase).
A informação pode ser inserida em um computador por meio de uma representação em forma de dados (se bem que, estando na máquina, deixa de ser informação). Como o conhecimento não é sujeito a representações, não pode ser inserido em um computador. Assim, neste sentido, é absolutamente equivocado falar-se de uma "base de conhecimento" em um computador. O que se tem é, de fato, é uma tradicional "base (ou banco) de dados".
Um nenê de alguns meses tem muito conhecimento (por exemplo, reconhece a mãe, sabe que chorando ganha comida, etc.). Mas não se pode dizer que ele tem informações, pois não associa conceitos. Do mesmo modo, nesta conceituação não se pode dizer que um animal tem informação, mas certamente tem muito conhecimento.
Assim, há informação que se relaciona a um conhecimento, como no caso da segunda frase sobre Paris, pronunciada por alguém que conhece essa cidade; mas pode haver informação sem essa relação, por exemplo se a pessoa lê um manual de viagem antes de visitar Paris pela primeira vez. Portanto, a informação pode ser prática ou teórica, respectivamente; o conhecimento é sempre prático.
A informação foi associada à semântica. Conhecimento está associado com pragmática, isto é, relaciona-se com alguma coisa existente no "mundo real" do qual se tem uma experiência direta. (De novo, é assumido aqui um entendimento intuitivo do termo "mundo real".).
5. Competência
Caracterizo Competência como uma capacidade de executar uma tarefa no "mundo real". Estendendo o exemplo usado acima, isso poderia corresponder à capacidade de se atuar como guia em Paris. Note-se que, nesse sentido, um manual de viagem, se escrito em uma língua inteligível, é lido como informação. Uma pessoa só pode ser considerada competente em alguma área se demonstrou, por meio de realizações passadas, a capacidade de executar uma determinada tarefa nessa área.
Pragmática foi associada a conhecimento. Competência está associada com atividade física. Uma pessoa pode ter um bom nível de competência, por exemplo, ao fazer discursos. Para isso, deve mover sua boca e produzir sons físicos. Um matemático competente não é apenas alguém capaz de resolver problemas matemáticos e eventualmente criar novos conceitos matemáticos – que podem ser atividades puramente mentais, interiores (e, assim, por uma de minhas hipóteses de trabalho, não-físicas). Ele deve também poder transmitir seus conceitos matemáticos a outros escrevendo artigos ou livros, dando aulas, etc., isto é, através de ações físicas (exteriores).
A criatividade que pode ser associada com a competência revela uma outra característica. Pode ser vinculada com a liberdade, que não apareceu nos outros três conceitos porque não havia qualquer atividade envolvida neles, exceto sua aquisição ou transmissão. No exemplo dado, um guia competente de Paris poderia conduzir dois turistas diferentes de forma diversa, reconhecendo que eles têm interesses distintos. Mais ainda, o guia pode improvisar diferentes passeios para dois turistas com os mesmos interesses mas com reações pessoais diferentes durante o trajeto, ou ainda ao intuir que os turistas deveriam ser tratados distintamente. Cusumano e Selby descrevem como a Microsoft Corporation organizou suas equipes de desenvolvimento de software de uma forma tal que permitissem a criatividade típica de "hackers" embora fossem, ao mesmo tempo, direcionadas para objetivos estabelecidos, mantendo a compatibilidade de módulos através de sincronizações periódicas [Cusumano 1997].
Aqui está uma outra característica distinta entre homens e animais em termos de competência: os seres humanos não se orientam necessariamente por seus "programas" como os animais e podem ser livres e criativos, improvisando diferentes atividades no mesmo ambiente. Em outras palavras, a competência animal é sempre automática, derivada de uma necessidade física. Os seres humanos podem estabelecer objetivos mentais para as suas vidas, tais como os culturais ou religiosos, que não têm nada a ver com as suas necessidades físicas. Esses objetivos podem envolver a aquisição de algum conhecimento e de certas competências, conduzindo ao auto-desenvolvimento.
Competência exige conhecimento e habilidade pessoais. Por isso, é impossível introduzir competência em um computador. Não se deveria dizer que um torno automático tem qualquer habilidade. O que se deveria dizer é que ele contém dados (programas e parâmetros de entrada) que são usados para controlar seu funcionamento.
Assim como no caso do conhecimento, uma competência não pode ser descrita plenamente. Ao comparar competências, deve-se saber que uma tal comparação dá apenas uma idéia superficial do nível de competência que uma pessoa tem. Assim, ao classificar uma competência em vários graus, por exemplo, "nenhuma", "em desenvolvimento", "proficiente", "forte" e "excelente", como proposto no modelo de competência do MIT [MIT I/T], ou "principiante" ("novice"), "principiante avançado" ("advanced beginner"), "competente", "proficiente" e "especialista", devidas a Hubert e Stuart Dreyfus [Devlin 1999 pg. 187], deve-se estar consciente do fato de que algo está sendo reduzido a informação (desde que se entenda o que se quer exprimir com esses graus). Existe uma clara ordenação intuitiva nesses graus, que vão de pouca a muita competência. Associando-se um "peso" a cada uma, como 0 a 4 no caso do MIT e 0 a 5 no caso dos Dreyfus (nesse caso, entenda-se 0 como "nenhuma), ter-se-á quantificado (isto é, transformado em dados), o que não é quantificável em sua essência. Desse modo, deve-se estar consciente também do fato que, ao calcular a "competência total" de alguém em áreas diversas – eventualmente requeridas por algum projeto –, usando pesos para os vários graus de competência, é introduzida uma métrica que reduz certa característica subjetiva humana a uma sombra objetiva daquilo que ela realmente é, e isso pode conduzir a muitos erros. A situação agrava-se nas habilidades comportamentais, tais como "liderança", "capacidade de trabalho em equipe", etc.
Não estou dizendo que tais avaliações quantificadas não deveriam ser usadas; quero apenas apontar que o sejam com extrema reserva, devendo-se estar consciente de que elas não representam qual competência tem realmente a pessoa avaliada. Elas deveriam ser usadas apenas como indicações superficiais, e deveriam ser acompanhadas por análises subseqüentes pessoais – e, portanto, subjetivas. No caso de seleção de profissionais, um sistema de competências deveria ser encarado como aquele que simplesmente fornece uma lista restrita inicial de candidatos, de modo que se possa passar a uma fase de exame subjetivo de cada um. Se o computador é usado para processar dados, permanece-se no âmbito do objetivo. Seres humanos não são entidades puramente objetivas, quantitativas e, desse modo, deveriam sempre ser tratados com algum grau de subjetividade, sob pena de serem encarados e tratados como quantidades (dados!) ou máquinas (isto é obviamente ainda pior do que tratá-los como animais).
6. Campos intelectuais
Essas caracterizações aplicam-se muito bem a campos práticos, como a informática ou a engenharia, mas necessitam elaboração subseqüente para campos puramente intelectuais. Examinemos o caso de um historiador competente. Não há qualquer problema com a sua competência: ela se manifesta por meio de livros e artigos escritos, eventualmente de conferências e cursos dados, etc. Por outro lado, é necessário estender a caracterização de conhecimento, de modo a abranger um campo intelectual como o da história: geralmente os historiadores não têm experiências pessoais dos tempos, pessoas e lugares do passado. Ainda assim, um bom historiador é certamente uma pessoa com muito conhecimento no seu campo.
Infelizmente, a saída que proponho para essa aparente incongruência de minha caracterização não será aceita por todos: admito como hipótese de trabalho que um bom historiador tem, de fato, uma experiência pessoal – não das situações físicas mas do "mundo" platônico das idéias, onde fica uma espécie de memória universal. Fatos antigos estão gravados naquele mundo como "memória real" e são captados através do pensamento por alguém imerso no estudo dos relatos antigos. As palavras "intuição" e "insight" (literalmente, "visão interior") tratam de atividades mentais que têm por vezes a ver com uma "percepção" daquele mundo. De fato, "insight" significa de acordo com o American Heritage Dictionary (edição de 1970), "a capacidade de discernir a verdadeira natureza de uma situação", "um vislumbre elucidativo". "Verdadeiras naturezas" são conceitos, logo não existem fisicamente; seguindo Steiner coloco a hipótese de que, através do "insight", isto é, uma percepção interna, o ser humano "vislumbra" o mundo das idéias [Steiner 2000 pg. 71].
Se se puder aceitar, como hipótese de trabalho, que o conceito de circunferência é uma "realidade" no mundo não-físico das idéias, com existência independente de qualquer pessoa, então não será difícil admitir que o pensar é um órgão de percepção, com o qual se pode "vivenciar" a idéia universal, eterna, de "circunferência". Nesse sentido, e usando minha caracterização para "conhecimento", pode-se dizer que uma pessoa pode ter um conhecimento do conceito "circunferência". Note-se que uma circunferência perfeita não existe na realidade física, assim como não existem "reta", "ponto", "plano", "infinito", etc. Assim, jamais alguém viu uma circunferência perfeita, assim como nenhuma pessoa atualmente viva experimentou com os seus sentidos atuais a Revolução Francesa ou encontrou Goethe, embora sejam, ambos, realidades no "mundo arquetípico" desse último.
Assim, evitei que bons historiadores sejam rotulados como tendo apenas informação e nenhum conhecimento…
7. Comentários gerais
É necessário reconhecer que as caracterizações apresentadas para dado, informação, conhecimento e competência não são usuais. Por exemplo, é comum considerar-se "dado" como um subconjunto próprio de "informação", isto é, o dado é um tipo particular de informação. Considero útil separar completamente esses dois conceitos, isto é, de acordo com as considerações feitas, os dados não são parte da informação. Esta, como foi visto, pode em alguns casos ser transmitida por meio de dados, isto é, estes podem ser uma representação da informação. Em outros, qualquer representação por meio de dados retira da informação sua essência. O mesmo se aplica a informação e conhecimento, e a conhecimento e competência.
É interessante observar que, nessas caracterizações, não existe "Teoria (formal) da Informação". O que Claude Shannon desenvolveu foi de fato uma "Teoria dos Dados". Theodore Roszack discorre sobre as polêmicas que o nome "Teoria da Informação" suscitou [Roszack 1993 pg. 12], já que a teoria de Shannon lida, por exemplo, com a capacidade de canais de comunicação, sem se importar com o conteúdo (significado). A capacidade desses canais refere-se à capacidade de transmitir dados, e não informação. Assim, no sentido aqui exposto, não se deve falar de "quantidade de informação", e sim "quantidade de dados" transmitida por um canal. "Bit" não é uma unidade de informação, e sim de dados, aliás, como o próprio nome o mostra ("BInary Digit"), pois um número por si não contém informação, é um dado puro.
Um dado é puramente objetivo – não depende do seu usuário. A informação é objetiva-subjetiva no sentido que é descrita de uma forma objetiva (textos, figuras, etc.) ou captada a partir de algo objetivo, como no exemplo de se estender o braço para fora da janela para ver se está frio, mas seu significado é subjetivo, dependente do usuário. O conhecimento é puramente subjetivo – cada um tem a vivência de algo de uma forma diferente. A competência é subjetiva-objetiva, no sentido de ser uma característica puramente pessoal, mas cujos resultados podem ser verificados por qualquer um.
A caracterização feita aqui pode ser de valia para empresas. Elas devem conscientizar-se de que não colocam informações no computador, e sim dados. Aqui há dois aspectos a considerar. Os dados devem representar o melhor possível as informações que devem ser obtidas a partir deles. Além disso, eles sempre serão interpretados pelos profissionais da empresa. O mesmo dado pode ser tomado como duas informações diferentes. Para evitar isso, não basta que represente claramente a informação desejada, mas que os profissionais sejam preparados para interpretá-lo da maneira esperada. Keith Devlin cita alguns casos trágicos, com desastres de aviação, devidos a interpretação errada de dados ou à representação ambígua das informações [Devlin 1999 pgs. 9 (o caso das Canárias, em 1977, com 583 mortos) e 76 (o caso de Cali, em 1995, com 159 mortos), respectivamente].
Por outro lado, é importante saber que é impossível transmitir conhecimento: o que se transmite são dados, eventualmente representando informações. Para que haja transmissão de conhecimento de uma pessoa para outra, é necessário haver interação pessoal entre os envolvidos, com a primeira mostrando ou descrevendo vividamente a sua experiência. Devlin cita dois casos de grandes empresas em que se tentou transmitir conhecimento através de dados, mas a transmissão só se concretizou com o contato pessoal [idem pgs. 176 e 177].
Já a competência só pode ser adquirida fazendo-se algo, isto é, as empresas que querem desenvolver competência em seus profissionais em certa área devem fazê-los trabalhar na mesma ou participar de projetos, preferivelmente juntamente com pessoas com grande competência.
8. A literatura
Na literatura encontra-se apoio para algumas das idéias aqui expostas, desenvolvidas independentemente. Por exemplo, Y. Malhorta diz: "O paradigma tradicional dos sistemas de informação está baseado na procura de uma interpretação consensual da informação fundamentada em normas ditadas socialmente ou nas diretrizes dos dirigentes das empresas. Isto resultou na confusão entre conhecimento e informação. Conhecimento e informação, contudo, são entidades distintas. Enquanto a informação gerada por computadores não é um veículo muito rico da interpretação humana para a ação em potencial, o conhecimento encontra-se no contexto subjetivo de ação do usuário, baseado naquela informação. Assim, não seria incorreto sugerir que o conhecimento está no usuário e não no conjunto de informações, algo levantado há duas décadas atrás por West Churchman, o filósofo pioneiro em sistemas de informação." [Malhorta 1978].
Note-se que, no sentido acima, informação não pode ser gerada por um computador. O computador pode apenas reproduzir sua representação em forma de dados, eventualmente com alguma modificação de formato ou algum tratamento puramente sintático. O computador pode gerar dados, por exemplo calculando a temperatura média de várias cidades. Mais ainda, "ação" foi associada a competência e não a conhecimento.
Malhorta também diz: "Karl Erik Sveiby, o autor de The New Organization Wealth: Managing and Measuring Knowledge-Based Assets (Berret Koehler, 1997) ("A Nova Riqueza Organizacional: Gerenciando e Medindo Ativos Baseados em Conhecimento"), argumenta que a confusão entre conhecimento e informação levou a direção de empresas a investir bilhões de dólares em empreendimentos de tecnologia da informação com resultados apenas marginais. Sveiby afirma que os gerentes de negócio necessitam compreender que, diferentemente da informação, o conhecimento está incorporado nas pessoas, e a criação de conhecimento ocorre no processo de interação social. Em uma nota similar, Ikujiro Nonaka, o primeiro Professor Titular da Cadeira Xerox de Conhecimento da Universidade da Califórnia em Berkeley, enfatizou que somente os seres humanos podem ter o papel central na criação do conhecimento. Nonaka argumenta que os computadores são meras ferramentas, não importando a grande capacidade de processamento de informação que possam ter."
Considero a confusão entre informação e competência ainda pior do que a existente entre informação e conhecimento, pois competência deveria ser encarada com muito mais subjetividade e estar ligada a alguma realização física.
De acordo com a caracterização aqui exposta, um indivíduo pode adquirir conhecimento sem interação social. Por exemplo, alguém pode fazer uma visita extensa a Paris sozinho, sem falar com ninguém do local. Bem, Paris é em grande parte um resultado de interações sociais, mas a visita poderia ser feita a um lago ou montanha.
Nanoka parece acreditar que o conhecimento pode ser descrito, com o que não concordo. Finalmente, no sentido exposto, não existe nos computadores "processamento da informação", mas apenas "processamento de dados". Por exemplo, uma formatação de informação por um computador consiste, na realidade, na formatação dos dados que a representam. Com muito mais ênfase ainda sou contra a expressão "processamento de conhecimento" ou "banco de dados de conhecimento".
Em seu livro sobre gerenciamento de conhecimento, Davenport e Prusack dizem: "conhecimento não é nem dado nem informação, embora esteja relacionado a ambos e as diferenças entre aqueles termos sejam freqüentemente uma questão de grau" [Davenport 1998]. Concordo com a primeira afirmação. Mas, nas caracterizações apresentadas, os três conceitos são absolutamente diferentes, e não uma questão de grau.
Eles estão também de acordo com Malhorta: "A confusão sobre o que são dados, informação e conhecimento – como diferem e o que tais palavras significam –, resultou em enormes gastos em iniciativas tecnológicas, raramente produzindo aquilo que as empresas que nisso despenderam o seu dinheiro necessitavam ou pensavam estar obtendo. … O êxito e o fracasso organizacional podem depender freqüentemente de se saber quais daqueles se necessita, quais se tem e o que se pode fazer ou não com cada um deles." Este trabalho tenta estabelecer diferenças essenciais entre eles; quem sabe elas ajudem a dar um fim à presente confusão.
Eles caracterizam "dado" como "um conjunto de fatos discretos, objetivos, sobre eventos." Estou de acordo quanto a dados serem discretos e objetivos. Mas discordo quanto aos eventos, pois dados podem ser gerados por computadores. Por exemplo, podem ser o resultado de alguns cálculos sem qualquer vinculação com fatos do mundo real (os eventos). Sentir o frio é um evento, mas não é um dado. Eles estabelecem que "os dados por si mesmos têm pouca intenção ou relevância." Como foi visto, considero os dados por si sós como sendo simples representações simbólicas, não tendo absolutamente qualquer relevância ou propósito; somente ao serem usados por alguém já não como dados, mas como informação, são acrescentadas relevância e intenção.
Eles também estabelecem que "… não existe qualquer significado inerente aos dados. Os dados descrevem somente uma parte do que aconteceu." Sim, não existe qualquer significado nos dados, eles são apenas representações simbólicas e, por si sós, não possuem qualquer conexão com o que descrevem. Um ser humano deve estabelecer tal conexão. Além disso, eu não diria que os "dados descrevem" algo. Eles simplesmente podem ser a representação de informações, mas também podem ser puro lixo, sem que se possa extrair deles nenhuma informação. Por exemplo, a tabela de cidades e temperaturas em chinês (V. item 2) é puro lixo para quem não lê ou não compreende essa língua.
Duas afirmações interessantes: "Dados são importantes para as organizações – em grande parte, naturalmente, porque constituem matéria prima essencial para a criação de informação." "As empresas algumas vezes acumulam dados porque são factuais e, assim, criam uma ilusão de precisão científica." Como foi exposto aqui, dados são objetivos; além disso, eles podem sempre ser expressos matematicamente, daí a ilusão mencionada.
Na seção sobre informação, eles a descrevem como "… uma mensagem, usualmente na forma de um documento ou de uma comunicação audível ou visível. Como com qualquer mensagem, ela tem um emissor e um receptor. A informação visa mudar a forma com que o receptor percebe algo… A palavra ‘informar’ significava originalmente ‘dar forma a’, e a informação visa moldar a pessoa que a obtém, produzir alguma diferença em seu ponto de vista ou discernimento." A caracterização aqui apresentada é mais geral: ela não implica que aquele que origina a informação visa transmiti-la a mais alguém. Além disso, como no exemplo de se avaliar o frio pondo o braço para fora da janela, a informação nem foi captada por meio de uma mensagem. Mas a concepção de informação como mensagem é muito interessante (desde que tenha algum significado para o receptor), porque cobre a maior parte dos propósitos de se criar alguma informação. Um ponto importante aqui é "Portanto, falando estritamente, segue-se que o receptor, não o emissor, decide se a mensagem que ele obtém é realmente informação – isto é, se ela verdadeiramente o informa". (Veja-se o exemplo da tabela de cidades e temperaturas, mas em chinês.) Mais adiante, lê-se: "Diferentemente dos dados, a informação tem significado – ‘relevância e propósito’… Não somente ela potencialmente forma o receptor, mas ela tem forma: está organizada com algum propósito. Dados tornam-se informação quando o seu criador acrescenta significado". Apesar do problema do criador, pois quem acrescenta significado é principalmente o receptor, e o "criador" de dados poderia ser um computador – é agradável ver que as minhas idéias concordam inteiramente com algumas das deles. Vale a pena mencionar sua última frase naquela seção. "O corolário para os gerentes de hoje é que ter mais tecnologia da informação não necessariamente aumenta o estado da informação". É óbvio, a tecnologia é de dados, e não de informação ou, na melhor das hipóteses, do armazenamento ou transmissão da representação da informação.
Como aquele livro trata sobre gestão do conhecimento, na seção sobre o conhecimento é fornecida uma ampla caracterização desse conceito: "Conhecimento é uma mistura fluida de experiência estruturada, valores, informação contextual e discernimento especializado que fornece um parâmetro para avaliar e incorporar novas experiências em informação. Origina-se e é aplicado nas mentes dos conhecedores. Nas organizações torna-se freqüentemente incorporado não somente em documentos ou repositórios, mas também em rotinas organizacionais, processos, práticas e normas" [pg. 5].
A caracterização dada aqui restringe o conhecimento a uma experiência pessoal; ela não está de acordo com o resto. Em particular, rotinas e processos podem não estar nas mentes dos conhecedores, e as normas escritas são, nesse sentido, apenas dados. Elas podem ser lidas como informação, mas provavelmente algumas dessas normas são incompreensíveis, e portanto são apenas dados mesmo. "Enquanto de um lado encontramos dados em registros ou transações e, por outro, informação em mensagens, obtemos conhecimento dos indivíduos ou grupos de conhecedores ou, às vezes, em rotinas organizacionais". Sim, o conhecimento encontra-se nos indivíduos, mas o que eles transmitem e o que deles se obtém é informação (se o receptor a compreender), isto é, mensagens, de acordo com os autores, em geral sob forma de dados. Mas o exemplo do berro (V. item 3) também mostra que informações podem ser transmitidas sem que sejam representadas por dados.
É interessante observar que o seu valioso livro não menciona a competência. Algumas vezes eles tocam marginalmente em "perícia" ("expertise"), mas seu foco principal está no armazenamento e na transmissão de conhecimento (ou melhor, do que eles entendem por isso), práticas e tecnologias para a gestão do conhecimento, etc.
Um interessante livro é o de Keith Devlin [Devlin 1999]. Ele propõe-se a desenvolver uma "compreensão científica de informação e do conhecimento" [pg. 3]. "É por causa de o fato de ser construído sobre uma investigação robusta (‘sound’) e teórica da informação é que este livro difere da maioria dos livros sobre negócios com as palavras ‘informação’ e ‘conhecimento’ em seus títulos …" [pg. 5]. Só que, no fim do livro, ele diz que sua "teoria", que ele denomina de "teoria da situação" ("situation theory") é simplesmente um "começo de ciência" [pg. 207]. E nem poderia ser mais do que isso, pois aquelas duas palavras dependem do fator humano, o que ele claramente reconhece no caso da segunda [idem]. No fundo, parece-me que sua "teoria" é da especificação de contextos ("situações"). De fato, para haver informação no sentido aqui exposto, é preciso haver "compreensão" da mensagem ou do fenômeno percebido (como os exemplos do frio que está fazendo ou do berro, cf. item 3), o que envolve contexto, dado pela pessoa que recebe ou tem a percepção.
Ele também dá importância a uma conceituação precisa de dados, informação e conhecimento: "É essencial compreender as distinções sutis entre conceitos de dados, informação e conhecimento …" [pg. 14]. Só que, na minha conceituação, as distinções não são sutis, são enormes; quem sabe com isso ela seja mais clara. "… como pudemos observar [por meio de exemplos de como informação – dado, na minha conceituação – transforma-se em conhecimento] a distinção entre informação e conhecimento não é muito limpa (‘clean"), e é em grande parte uma questão de ênfase." [pg. 151]. Parece-me que a conceituação aqui exposta seja bem "limpa".
"Falando aproximadamente (‘roughly’), dados são o que jornais, relatórios e ‘sistemas de processamento de dados’ nos fornecem" [pg. 14]. Minha definição (cf. item 2) é bem mais precisa e genérica. Logo em seguida vem: "Quando pessoas adquirem dados e os encaixam no contexto (‘framework’) de informação previamente adquirida, esses dados tornam-se informação." [idem]. Ora, pois, que circularidade… Mais adiante, como bom matemático de formação, ele dá uma "equação": "Informação = Dados + Significado" [idem] e com isso chega a apenas uma das formas de informação como foi caracterizada aqui. Na conceituação deste artigo, dado é uma representação. Informação pode ser adquirida de um dado se se associar significado a ele, mas ela também pode ser adquirida sem dados. A propósito, não me agradam essas representações em "equações", como se se tratasse de Matemática, o que não o é de maneira nenhuma. Como se pode somar grandezas diferentes? (É análogo a se somar a altura de alguém ao seu peso.) Pior, nem se tratam de grandezas, apesar do primeiro termo poder ser expresso em "bits" na conceituação aqui exposta, mas não na dele. Além disso, ele não define dados e, como foi visto, "significado" é algo informal. Assim, essa soma não tem nada a ver com a soma da Matemática, e o todo não é uma equação.
Nesse ponto, ele chega a conhecimento: "Quando uma pessoa internaliza a informação ao ponto de que pode fazer uso dela, chamamos de conhecimento. … Como uma equação: "Conhecimento = Informação internalizada + Habilidade de usar a informação" [pg. 15]. Aí há uma divergência: no sentido aqui exposto, pode-se ter conhecimento sem que se faça uso dele. Pior, pode-se usar uma informação teórica (internalizada) para derivar outra informação teórica. Além disso, o conhecimento, nesse sentido, exige uma vivência, ao passo que, a internalização que ele menciona poderia dar-se a partir de dados teóricos (como no caso do manual de viagem do item 3). Mas a discordância não é total: "Conhecimento existe nas mentes dos indivíduos." [idem], se bem que talvez as concepções de "mente" sejam diferentes (para mim, ela não é física). Mas, em outro trecho, ele diz "Conhecimento é informação possuída de tal forma que a torna disponível para uso imediato." Se ela está na mente das pessoas, como dizer que ela tem uma "forma"?
Não vou entrar nos detalhes de outras formulações que ele dá para esses conceitos, pois acabaria fazendo uma resenha do mesmo. Resta tratar brevemente do que ele entende por competência.
Ele trata muito pouco dela, que denomina "especialização" ("expertise") [pg. 185]. A minha denominação (correspondente ao inglês "competency") parece melhor, pois nos níveis mais baixos de competência não se pode dizer que um profissional já é especialista. Ele dá os graus de competência já mencionados no item 5, caracterizando cada grau. O "principiante" caracteriza-se por seguir regras consciente e cegamente, sem levar em conta o contexto da situação; o "principiante avançado" também segue regras conscientemente, mas modifica algumas de acordo com o contexto; o "competente" ainda segue regras mas o faz de maneira fluida, sem precisar pensar em cada regra que deve seguir, escolhendo livremente a regra seguinte e provavelmente não reage bem em casos de emergência; o "proficiente" em geral não seleciona e segue regras, reconhecendo situações como sendo muito similares a outras que já enfrentou antes, reagindo por um reflexo treinado; finalmente, o "especialista" não segue regras conscientemente, e nem está ciente de que segue regras que regulam a atividade, agindo "suavemente, sem esforço e subsconscientemente" [pg. 186]. Como se vê, essas caracterizações não são muito claras, e o pior é que, com elas, provavelmente outra pessoa deve atribuir o grau de competência a cada profissional. E o que dizer de áreas intelectuais, como as de projeto, de programação de computadores, etc.? Nessas áreas, a atividade é sempre consciente. Ele faz a seguinte associação. "O primeiro estágio de competência (‘expertise’) corresponde, mais ou menos, a uma informação que é relacionada de maneira tão simples e direta à sua representação, que pode ser praticamente classificada como dados. Os estágios 2 e 3 correspondem mais ou menos à posse de informação. Os estágios 4 e 5 correspondem a conhecimento." [pg. 188]. Uma analogia que parece bem forçada, e do ponto de vista aqui exposto, mistura alhos com bugalhos: só com dados não se faz absolutamente nada, pois eles não têm significado; só com informação faz-se algo somente se ela está relacionada com um conhecimento, pois senão não tem nada a ver com o mundo real. Nas caracterizações aqui apresentadas a competência, mesmo no seu grau mais elementar, sempre envolve conhecimento, pois ela diz respeito a uma ação no mundo real.
Devlin não chega a reconhecer que uma competência diz respeito a uma habilidade sobre uma área de conhecimento, como será visto no próximo item.
9. Matrizes de competência
O exemplo de um guia competente de Paris indica que a competência é uma habilidade de produzir algo (servir de guia) em uma certa área de conhecimento (Paris). Alguém é competente em uma língua estrangeira (a área de conhecimento) se tiver a habilidade de compreender a língua escrita, ou de compreender a língua falada, de falar, de proferir nela conferências ou de fazer a partir dela traduções escritas ou simultâneas, etc. Note-se que uma pessoa pode ter diferentes graus de competência para cada uma dessas habilidades em cada uma de diferentes línguas estrangeiras. Mas para todas as línguas estrangeiras podem ser consideradas as mesmas habilidades. Isso responde a pergunta formulada no início deste artigo.
Assim, pode-se construir para cada profissional uma matriz de competência, indicando em suas linhas as áreas de conhecimento e em suas colunas as várias habilidades aplicáveis àquelas áreas. Cada célula contém um grau de competência, como um dos cinco ou seis mencionados na seção 5 ou os que serão descritos adiante; a falta de competência pode ser indicada por uma célula em branco.
Um profissional pode não ser competente em uma certa habilidade para uma certa área de conhecimento, mas pode ter conhecimentos (experiência pessoal) dela. Este fato é indicado pela atribuição de um grau de conhecimento à célula correspondente na matriz daquela pessoa. O mesmo para a informação nas acepções expostas anteriormente. Assim, as matrizes de competência podem ser usadas para representar não só competências, mas também conhecimentos (o que exige alguma vivência prática, como ter feito exercícios, acompanhado um projeto, etc.) ou informação (que representa um conhecimento meramente teórico, fruto de leituras, cursos sem parte prática, etc.).
Para simplificar a matriz, a representação de algum grau de competência em uma célula elimina a representação de certo grau de conhecimento que, por sua vez, substitui a representação de informação. Isso tem funcionado bem nas várias áreas do processamento de dados; profissionais entrevistados estavam bem satisfeitos com essa simplificação. Uma simplificação adicional foi introduzida no sistema que implementado na PROMON, que contava exclusivamente com uma matriz de T.I., pela diminuição dos graus de conhecimento e informação de cinco para três valores (nenhum, fraco/razoável, bom/excelente). Já no sistema da PRODESP a simplificação foi ainda maior: foram empregados apenas dois valores para os graus de competência ("básica" e "avançada"), e apenas um para conhecimento e um para informação (correspondentes a ter ou não ter).
Por exemplo, se alguém seguiu um curso teórico ou leu alguns manuais referentes a uma certa área, é inserido um grau de informação na célula correspondente. Se a mesma pessoa fez alguns exercícios práticos ou examinou cuidadosamente alguns produtos desenvolvidos com o uso daquela informação, isso é classificado como conhecimento. Um grau de competência somente é lançado no caso de o profissional ter produzido algum produto naquela área ou ter trabalhado nela há algum tempo.
Nas áreas de engenharia e processamento de dados, muitos produtos e sistemas são produzidos através de projetos. Nesses casos, foram representadas as seguintes habilidades típicas, correspondentes a fases de projeto, para cada área de conhecimento: 1. Análise (de requisitos e de objetivos); 2. Projeto (planejamento e modelagem do produto); 3. Construção (montagem do produto ou sistema); 4. Implementação (teste, treinamento do usuário); 5. Suporte (manutenção, apoio). Na PROMON, os dois primeiros itens foram combinados em um só, pois foi notado que os profissionais que tinha um tinham também o outro.
O sistema implementado na PRODESP tem um número qualquer de matrizes. Foram representadas as seguintes matrizes: de T.I., de Sistemas (onde cada área de conhecimento é um sistema desenvolvido pela empresa), de áreas administrativas (representando os conhecimentos fora de T.I., por exemplo na elaboração de licitações, no gerenciamento de recursos humanos, etc.), de línguas estrangeiras e de formação acadêmica. As habilidades e os graus de competência mudam por matriz. Por exemplo, na de formação há duas colunas de habilidades: maior grau (completo ou incompleto) atingido e número de anos de experiência na área de formação. Nesse sistema foi ainda incluído o último ano em que o profissional atuou na área de conhecimento.
O sistema da PROMON foi implementado como protótipo, empregando-se planilhas eletrônicas. Assim a matriz de competências de um profissional é simplesmente uma planilha. Alguma estrutura de bancos de dados foi empregada, como na codificação das áreas de conhecimento.
Já no sistema da PRODESP foi empregado um gerenciador de bases de dados, o que permitiu a generalização de todas as estruturas. Cada matriz é representada por uma coluna em que as áreas de conhecimento são estruturadas em forma de árvore de dois níveis no padrão Windows, isto é, com possibilidade de se expandir ou contrair o primeiro nível. As habilidades aparecem numa segunda coluna, também em dois níveis; o grau de competência é colocado ao lado da habilidade. Exibindo-se uma matriz de um profissional, selecionando-se uma área com o "mouse" os graus de competência lançados aparecem automaticamente ao lado das habilidades válidas para a matriz.
10. Seleção de profissionais
Para selecionar profissionais que satisfazem uma dada combinação de competências, tanto no sistema da PROMON quando no da PRODESP emprega a mesma representação das matrizes que são preenchidas pelos profissionais. No primeiro caso, preenchem-se as células com as competências mínimas desejadas. Quando se desejam várias habilidades para uma mesma área ou várias áreas, o conectivo lógico E é automaticamente assumido. Já no sistema da PRODESP há uma tela especial de seleção, onde pode-se especificar se nas comparações com os graus dos profissionais será usado o operador de comparação <=, = ou >=, indicando competência "inferior ou igual" (para se poder ver quais profissionais não detêm uma competência mínima, por exemplo para se selecionar can1111didatos a treinamento), "igual" ou "superior ou igual" às especificadas na tela de seleção.
Cada linha dessa condição pode conter: 1) apenas uma área de conhecimento (são selecionados os profissionais que detêm algum grau lançado em qualquer habilidade); 2) uma área e uma habilidade (idem, que têm algum grau lançado nessa habilidade para essa área); 3) uma área, uma habilidade e um grau de competência (valendo o operador de comparação escolhido). Uma linha de uma condição de seleção pode ser combinada com a seguinte por meio de um conectivo lógico E ou OU. Nesse último caso, pode-se especificar alternativas, como "competência em UNIX ou LINUX".
Além da condição de seleção, pode-se especificar um fator de obsolescência, por meio do ano em que o profissional trabalhou na área de conhecimento pela última vez, como por exemplo "selecione os profissionais que trabalharam com Delphi pelo menos até o ano 1998".
Ao usar matrizes de competência e condições de seleção para a alocação de profissionais a projetos e cargos, deve-se sempre ter em conta a observação feita sobre as avaliações objetivas e subjetivas (ver final da seção 5).
Durante a especificação de uma condição de seleção o sistema vai montando uma consulta ao banco de dados na linguagem SQL, usando um algoritmo desenvolvido por mim.
O software de recursos humanos PeopleSoft (HRMS), que não tem a conceituação de matrizes (a menos, curiosamente, do caso de línguas estrangeiras, onde estão especificadas várias habilidades) permite que se façam seleções dando-se um "grau de importância" para cada termo da condição de seleção. Como existe uma quantificação interna associada com cada grau de competência, uma combinação linear dos graus de competência e das importâncias produz uma "competência global" numérica para cada funcionário selecionado. O sistema pode, então, apresentar os funcionários selecionados em uma ordem de satisfação da condição de seleção. A atribuição desses pesos é uma questão delicada. O sistema deveria permitir a variação dos pesos, para se poder testar várias combinações dos mesmos, o que não é o caso do sistema da Peoplesoft.
11. Aplicações
A aplicação que originou o estudo aqui descrito e a primeira implementação (a da PROMON) visava selecionar profissionais para a formação de centros de competência (V. item 12) e na seleção de equipes de projeto. À primeira vista, pode-se pensar em elaborar uma única condição de seleção para toda a equipe de um projeto, especificando-se as competências necessárias para a execução deste último, selecionando-se assim a equipe completa. A experiência demonstrou que este não é o caso: líderes de projeto pensam em termos de perfis de profissionais necessários para sub-equipes de um projeto e não na faixa completa de competências requeridas por um projeto como um todo. Por exemplo, eles especificam: "Este projeto necessita, entre outras, de duas pessoas com a habilidade de tanto analisar como projetar ‘sites’ da Internet". Assim, uma equipe é na realidade formada por profissionais que satisfazem, cada um, a uma condição de seleção específica.
Se não existirem profissionais com uma certa competência requerida, o fato de alguém ter sido capaz, em um projeto anterior, em uma outra área de conhecimento e suas habilidades, de transformar suas informações ou conhecimentos em competência, é um forte indicador de preferência em seu favor. Para isso, seria necessário armazenar o histórico de mudanças de competências de cada profissional.
Além da seleção de profissionais, as matrizes de competência servem para se contar quantos profissionais detêm no mínimo uma certa competência dada, em cada célula da matriz, o que foi denominado de contagem geral de competências. Com isso, tem-se o perfil da empresa em ter de competências, podendo-se detectar células (indicando o cruzamento de uma área de conhecimento com uma habilidade) onde há muito poucos profissionais com a competência desejada. Para aproveitar os profissionais da empresa a fim de preencher futuramente as células desejadas, pode-se usar as caracterizações aqui expostas. Assim, um profissional que detém bom conhecimento não necessita de mais treinamento, e sim de participação em equipes de projeto ou de atuação em uma habilidade de uma área desejada, a fim de adquirir competência. Já a falta de informação em uma habilidade de uma área indica a necessidade de se prover treinamento. No caso de um profissional deter somente informação, pode-se decidir colocá-lo em um curso com parte prática, ou mesmo integrar uma equipe para adquirir o conhecimento e talvez a competência desejada.
O sistema pode ser expandido para se poder representar as matrizes das competências essenciais ("core competencies") de uma empresa. Essas matrizes indicariam quais competências mínimas devem existir dentro da própria empresa. Poderia haver então uma contagem geral apenas nas células das competências essenciais, indicando as falhas que devem ser preenchidas.
Sistemas gerenciadores como os descritos podem servir para uma Central de Atendimento localizar profissionais para atender consultas de clientes da empresa; para selecionar candidatos dentro da empresa para participar de processos seletivos; para localizar profissionais que devem acompanhar visitantes conforme o perfil destes, ou profissionais para serem entrevistados por veículos de comunicação sobre certas atividades específicas da empresa, etc.
Um sistema desses pode servir para grandes indústrias, a fim de alocar especialistas na operação de certas máquinas, etc. Nesse sentido, o levantamento das matrizes, das áreas de conhecimento e das habilidades relevantes formaria um modelo de referência de competência para cada segmento industrial.
Uma outra aplicação poderia ser a de alocação de professores em redes municipais ou estaduais de ensino. Por exemplo, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo conta com aproximadamente 300.000 professores. O sistema permitiria a criação de uma matriz de localidades e bairros, de modo que se pudesse selecionar professores não só pelas competências didáticas, mas também pela preferência de região de atuação.
Finalmente, um sistema semelhante poderia servir para coletar dados sobre candidatos a vagas em uma empresa, pois ele pode ser encarado como uma sistematização de currículos. Um sistema específico para vagas é o excelente Selector, desenvolvido pela PCA Engenharia de Software, de São Paulo (ver em www.selector.com.br). Ele é baseado numa concepção de "fichas curriculares", havendo uma ficha com informações básicas, permitindo-se que cada empresa adicione suas próprias fichas. Qualquer pessoa pode introduzir seus dados profissionais por meio da Internet, empregando a ficha básica, e acrescentar informações nas fichas específicas correspondentes a vagas de empresas, criadas por estas. De certa maneira, a PCA criou uma linguagem para definição de fichas curriculares. O sistema tem um interessante método de pesos associados a cada competência requerida, permitindo assim a ordenação dos candidatos selecionados. Esse método permite saber-se ainda quais candidatos preenchem todos os requisitos mínimos, pois esses recebem a soma máxima dos pesos. Várias grandes empresas já estão utilizando o sistema, podendo-se assim ter uma boa idéia de seus princípios, implementação e utilidade por meio de acesso pela Internet. Até o momento em da revisão deste artigo, senti a falta, nesse sistema, das conceituações aqui apresentadas para informação, conhecimento e competência, principalmente a caracterização da última como a confluência de uma habilidade em uma área de conhecimento, com a respectiva representação matricial.
12. Implementações
Na PROMON foi feita uma implementação de um protótipo juntamente com José Márcio Illoz, usando planilha eletrônica. Foi implementada uma matriz "padrão", com os nomes das áreas de conhecimento nas linhas e as habilidades nas colunas. As áreas são codificadas; os códigos servem para fazer a ligação lógica com uma planilha contendo a consolidação das competências de todos os profissionais. Essa matriz consolidada é usada na seleção e contagem de profissionais.
Um trabalho muito importante ligado ao levantamento de competências é o estabelecimento das áreas de conhecimento. No caso da PROMON foram levantadas cerca de 160 áreas para T.I., divididas em 3 níveis hierárquicos, que denominei de "grandes áreas", "áreas" e "sub-áreas". Infelizmente, em T.I é necessário entrar-se em muitos detalhes. Por exemplo, um profissional que tem competência na instalação de LINUX pode não tê-la em NT.
O sistema da PRODESP foi programado por Mateus Saldanha, usando Delphi e Oracle. O uso de um gerenciador de banco de dados em rede permitiu que se generalizasse o sistema para um número qualquer de matrizes e um número qualquer de habilidades por matriz (no caso da PROMON, havia uma só matriz com um número pré-determinado de habilidades, devido ao formato fixo imposto pela planilha eletrônica). Com isso, a representação das habilidades foi reduzida a dois níveis. Foi ainda introduzido o fator de obsolescência (V. item 10), e um sistema de segurança. O número variável de habilidades por matriz permitiu que se ampliasse o número de habilidades em relação ao sistema da PROMON para o caso da matriz de T.I., que ficou com 3 partes: habilidades de infra-estrutura (hardware e software), desenvolvimento de sistemas, e dar treinamento na área de conhecimento, num total de 8 habilidades de segundo nível. Aliás, a habilidade "dar treinamento" existe em todas as matrizes, a menos da de formação. Com isso, foram eliminadas duplicações de áreas (na PROMON, havia uma área UNIX na seção Infraestrutura, isto é, instalação desse sistema operacional, e a mesma área em Desenvolvimento, isto é, uso do UNIX para desenvolvimento de sistemas). Uma das conseqüências foi a redução dos níveis hierárquicos das áreas de conhecimentos para apenas 2, simplificando o sistema.
A segurança do sistema da PRODESP é feita em 4 níveis de acesso. O primeiro, que foi denominado de "usuário genérico", é aberto a qualquer pessoa da rede, que pode somente fazer uso da tela de seleção de profissionais, obtendo apenas o nome e dados básicos cadastrais dos profissionais que satisfazem a alguma condição de seleção. O "usuário pessoal" é o que está cadastrado no sistema com uma senha própria. Além de seleções, ele tem acesso apenas aos seus dados cadastrais e suas matrizes de competência, podendo alterá-las. O "usuário supervisor" pode ter todo o acesso do usuário pessoal, e ainda ler as matrizes de competências de seus subordinados. Finalmente, o "administrador do sistema" tem acesso irrestrito, podendo alterar as matrizes do sistema e os dados de qualquer profissional.
Na revisão deste artigo para este volume, o sistema da PRODESP já tinha sido testado com algumas dezenas de profissionais, e estava em fase de desenvolvimento de uma versão para a Intranet, usando JBuilder. Estava também em fase de implementação um banco de dados de treinamento integrado com o sistema de competências. Essa integração é feita principalmente pelo uso das mesmas áreas de conhecimento e habilidades nos dois sistemas, especificando-se quais áreas e habilidades são abrangidos por cada treinamento. Assim que um profissional concluir satisfatoriamente um curso, será feito o lançamento automático de uma competência (mais precisamente, informação ou conhecimento) na sua matriz, nas áreas e habilidades abrangidas por esse curso.
No caso da PROMON, fiz pessoalmente o preenchimento das matrizes apenas para os profissionais de T.I., junto com cada funcionário. Com isso, foi mantida uma certa uniformidade dos dados. No caso da PRODESP isso é inviável, pela quantidade muito grande de profissionais. A solução foi dar uma palestra sobre os conceitos do sistema, deixando cada profissional preencher sua matriz. Posteriormente, os supervisores ou líderes de projeto devem rever os preenchimentos e tentar uma uniformização.
13. Centros de competência
Uma empresa pode ser organizada com "centros de competência" (CCs). Isto significa que profissionais não são agrupados em departamentos ou divisões, mas em grupos de áreas de conhecimento afins. Nessa organização, reduzem-se os departamentos de negócio, que passam a ser dedicados a desenvolver novos projetos para a empresa ou para seus clientes. Os projetos são da responsabilidade dos departamentos de negócio, que requisitam do Centro de Gerenciamento de Projetos um ou mais gerentes para o projeto e dos CCs técnicos os profissionais necessários para desenvolvê-los.
Obviamente, caracterizações claras de informação, conhecimento e competência detidas pelos profissionais e seu levantamento são necessárias para a caracterização, estabelecimento e o funcionamento de um CC.
A razão para se organizar um CC é clara: as empresas desejam otimizar a alocação dos recursos humanos, diminuindo o tempo ocioso e escolhendo as pessoas certas, com a necessária competência, para cada projeto ou função. Mais que isso, uma tal organização favorece uma flexibilidade e uma dinâmica operacionais muito maiores, tornando-a seguramente mais adequada à nossa época agitada, de rápidas mudanças.
As vantagens são evidentes. Mas, o que dizer das desvantagens? Os CCs podem romper a integração social e o sentido de identidade da companhia. Os profissionais podem identificar-se com o projeto no qual estão envolvidos, mas projetos não são tão estáveis ou duráveis como os departamentos e as divisões. Quando um projeto é da iniciativa e realização de um departamento, terminá-lo significa permanecer no mesmo departamento e assumir um novo projeto com alguns dos mesmos colegas no mesmo ambiente administrativo. Estando lotado em um CC, após o término de um projeto para o qual foi alocado, o profissional retorna àquele centro, encontrando-se com os participantes de outros projetos. Argumenta-se que os profissionais desenvolverão uma identificação para com os seus CCs. Serão, ainda, capazes de interagir muito mais com os seus pares, dispersos entre vários departamentos nos modelos organizacionais clássicos e sem praticamente qualquer contato uns com os outros. Isso também estimularia o intercâmbio de informação e de conhecimento, ajudando o desenvolvimento de competências através do trabalho conjunto, facilitando também a organização e planejamento de treinamentos. Seria ótimo se um tal ponto de vista for correto.
14. Conclusões
Neste trabalho foram expostas caracterizações originais para informação, conhecimento e competência. Nas dezenas de entrevistas que fiz ao levantar competências de profissionais na área de T.I., essa distinção mostrou-se extremamente útil. Os entrevistados rapidamente acostumam-se a elas ao classificarem seus graus de informação, conhecimento ou competência. Uma outra contribuição foi a caracterização de competência como se referindo a uma determinada habilidade sobre uma certa área de conhecimento. Com isso foi possível introduzir maior clareza nesses conceitos, e representar as competências em forma de matrizes bidimensionais, agrupando as áreas de conhecimento em distintas matrizes de acordo com o conjunto de habilidades que se aplicam às distintas áreas.
Essas matrizes representam, em síntese, uma sistematização dos currículos dos profissionais, em termos de competências, conhecimentos e informações por eles detidos. Currículos, empregados na seleção de profissionais para o preenchimento de cargos ou na formação de equipes de projetos, consistem tradicionalmente de textos não sistematizados. Mesmo que divididos em tópicos, esses textos não se prestam a um processamento de dados, contrariamente ao método aqui exposto. Ele se distingue de outros sistemas de competências pelo fato de usar matrizes e de levar em conta graus de informação, conhecimento e competência.
É importante enfatizar que o computador apenas indica quais profissionais qualificam-se nas competências desejadas. Após essa indicação deve-se proceder a um exame dos currículos, a entrevistas, etc., a fim de complementar os dados com uma fase de análise subjetiva, necessária sempre que se lida com questões humanas (V. item 5) – caso contrário as pessoas são tratadas como máquinas, advindo em geral problemas psicológicos, fora falhas na seleção.
O resultado prático do levantamento de competências na PROMON e na PRODESP foi muito bom. Os profissionais entrevistados ficam agradecidos com a chance de verem seu currículo representado sistematicamente, e a possibilidade de atualizá-lo constantemente.
Há 3 grandes problemas no levantamento de competências segundo o método aqui exposto. Em primeiro lugar há a necessidade de uniformizar os critérios de atribuição dos vários graus de competência, caso contrário não se pode comparar um profissional com outro. Esse problema foi resolvido na PROMON com a concentração das entrevistas em um só entrevistador. Mas isso é inviável quando se tem muitas centenas de profissionais, pois cada entrevista leva em geral pelo menos 1 hora. Em segundo lugar, este método não leva em conta a qualidade dos projetos e do trabalho já executados pelos profissionais. Para isso seria necessário introduzir mais um fator, que teria que ser levantado com os líderes de projeto e gerentes. Mas aí introduzir-se-ia um aspecto de julgamento por superiores, que foi evitado ao desconsiderá-lo. Um terceiro problema, que não foi enfrentado, foi o de introduzir uma matriz comportamental, com competências em liderança, em trabalho em equipe, qualidade de comunicação escrita e oral, etc. Muitos autores dão mais importância a às competências comportamentais do que às técnicas, como Daniel Goleman [Goleman 1995]. Mas o levantamento dessas competências introduz um fator delicado e que talvez desse ser evitado numa fase inicial: elas não devem ser lançadas pelo próprio profissional, mas seu chefe imediato. A tarefa que na PROMON dizia respeito exclusivamente às competências técnicas, de modo que o problema foi evitado pela raiz. Na PRODESP foi proposto evitar as competências comportamentais para não cair em possíveis conflitos sociais decorrentes da avaliação de um profissional por um terceiro, o que poderia colocar os profissionais contra o levantamento de suas competências. Talvez por se ter evitado os problemas decorrentes dos dois últimos pontos, a receptividade do sistema foi excelente entre os profissionais dessas duas empresas.
Referências
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- Davenport, T.H. e L. Prusak. Working Knowledge: how Organizations Manage what they Know. Boston: Harvard Business Scholl Press, 1998.
- Devlin, K. Infoscience: Turning Information into Knowledge. New York: W.H. Freeman, 1999.
- Goleman, D. Inteligência Emocional: A Teoria Revolucionária que Redefine o que é Ser Inteligente (trad. M. Santarrita). Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1995.
- MIT I/T Competence Model. Disponível em http://web.mit.edu/is/competency.
Malhorta, Y. Tools@Work: Deciphering the Knowledge Management Hype. Journal of Quality and Participation, special issue on Learning and Information Management, Vol. 21, No. 4, July/August 1998, pgs. 58-60. - Roszak, T. The Cult of Information: A Neo-Luddite Treatise on High-Tech, Artificial Intelligence, and the True Art of Thinking. Berkeley: University of California Press, 1994.
Searle, J. Minds, Brains & Science: the 1984 Reith Lectures. New York: Penguin Books, 1991. - Steiner, R. A Filosofia da Liberdade: Fundamentos para uma Filosofia Moderna – Resultados com Base na Observação Pensante, Segundo o Método das Ciências Naturais, A 4. São Paulo: Ed. Antroposófica, 2000.
- Talbott, S.L. (ed.). Netfuture: Technology and Human Responsibility. Revista eletrônica, todos os números disponíveis em www.netfuture.org.
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